terça-feira, 3 de janeiro de 2012

"No Castelo de S. Jorge" - António Botto


Pedi à sentinela para entrar.
Eu ia um pouco à tôa sem saber
Se era fácil poder justificar
O meu desejo de espreitar o dia
E ver nascer o Sol desse Castelo
Que domina Lisboa no mais belo
E surpreendente quadro de beleza!

Lisboa, a mais gentil, a portuguesa
E nobre capital de um povo grande
No sofrimento e na resignação,
Estava ainda preguiçosa e lenta
No acordar dessa manhã de outono
Que eu vou tentar fixar nesta canção.

O dia surrateiro vai abrindo
A sua morrinhenta claridade
E uma névoa azulada a esfarrapar-se
Mostra o desenho e a linha da cidade.

Um silêncio, momentaneamente,
Aperta-me o sentir que se tornou
Mais animado e profundo;
E o Sol rebenta vitorioso
Como trofeu de raras predarias
Espalhadas à larga pelo mundo!

Nisto, perto, à minha volta,
Tudo se transforma e canta
No amplo aspeto mais vivo;
Há versos na minha alma, nos meus olhos
A luz é tanta que não vejo nada,
E fico preso à luz, todo cativo
Na sensação de não saber dizer
Se o sol nasce para dar
Uma lição de verdade,
Se apenas para marcar
Um contraste divino e luminoso
Com a sórdida e feia humanidade!

Olho agora o Tejo e os montes,
E os barcos... Saindo a barra
Alcanço, ainda, um navio
Perdendode-se, lentamente,
Longe, na distância, além...

Chega-me a voz de um clarim.
Uma formatura passa,
E os soldados vão risonhos
Nas suas fardas de cotim.

Saio, e desço uma calçada
Com prédios de arquitetura
Nem má nem boa; - pequenas
E toscas habitações...

A luz do Sol é mais clara,
Mais cintilante, maior...

Chora dentro do meu peito
Uma lembrança de amor.

António Botto

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